Olá, pessoal!
Nesta edição vamos falar do Tempo, este ente que nos penetra e absorve, nos fazendo mergulhar em memórias, milhões de questionamentos, e também na enfeitiçante ideia de infinito. Mesmo sabendo que o Tempo escorre lindamente, como a areia poética da ampulheta, vivemos sempre entre a vontade irresistível de estagná-lo e o desejo de seguir vivendo como se hoje fosse o último dia de nossa existência.
Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo.
(José Saramago)
Tempo e Tinta
por Clarice Dall’Agnol
“Lo que dejo por escrito,
no está tallado em granito,
Yo apenas suelto em el viento,
Pressentimentos”
(Jorge Drexler, em “Tinta y Tiempo”)
“O Tempo, este canalha!”. Essa frase ouvi muito no início dos anos 1990, dita em alto e bom tom (som?), aos quatro ventos, com muito bom humor, coragem e indignação, pela Sra. Zélia Casado, mais conhecida como “Vó Nininha”, avó paterna do Márcio, que eu encontrei em 1991, aos 17 anos, na faculdade de Direito da PUC-RS. Ficamos amigos, depois começamos a namorar, casamos, tivemos dois filhos, dividimos uma baita vida juntos, um dia nos separamos, e hoje somos amigos de novo.
Ah, os ciclos...! Os ciclos nos definem e nos resumem, tornam mais lírica a Humanidade, e nos preenchem, fazendo com que a vida tenha um pouquinho mais de sentido. Bem sabe disso a minha querida amiga Brunna Stock, que também escreve aqui no PáginaDois, e para quem um dia dediquei um poema sobre os ciclos da vida, depois de conversamos sobre a beleza (e certeza) da ciclicidade da existência (Crescente - poema de Clarice para Brunna).
Mas eu dizia que o Tempo é um canalha. Eu? Não, quem dizia era a avó do Márcio, a personagem de abertura desta crônica! Sim, esta é uma crônica, leitoras e leitores. A origem da palavra crônica remete à “ordem cronológica”, originando-se o significado no grego khronos, porque, inicialmente, os relatos desse tipo de texto seguiam de fato uma ordem cronológica. Essa característica foi alterando-se ao longo do tempo, uma vez que a crônica passou a ter moldes mais literários. Aproximou-se mais da literatura, porém sem nunca abandonar sua característica de singeleza e leveza no narrar. Quem escreve crônicas não deixa de ser um memorialista. Mesmo que a crônica não se atenha mais, em nossos dias, à ordem cronológica dos fatos, toda crônica bem desenhada contém vívidos relatos de memória, de questões do cotidiano mescladas a toques memorialísticos de quem escreve, total e completamente revestidos do manto da singeleza, sem jamais serem “simplórios” e sem significância. Aprofundei-me mais sobre os aspectos teóricos e complexos da crônica como gênero literário no período de 2020 a 2022, quando concebi, elaborei e defendi minha dissertação de Mestrado, intitulada “(D)escrevendo Porto Alegre: um olhar lírico sobre a cidade pelos cronistas da capital gaúcha na primeira metade da década de 1990”. Esse mergulho contundente nas tecnicidades do gênero deu-me muito prazer, mas, ao mesmo tempo, creio que tenha me afastado um pouco do gênero como operadora desse tipo de produção literária.
Assim, voltemos de novo no Tempo (ou “ao” Tempo, tema central deste texto!): estreei na literatura “oficialmente” em 2003, escrevendo crônicas para um conhecido veículo online de esquerda da época, a Agência Carta Maior. Vivíamos então uma Era pré-redes sociais, que propiciava que as pessoas lessem com calma e afinco textos mais longos e elaborados, como este que hoje escrevo. Naquele ano, eu estava cursando o último ano de Letras na PUC-SP, e finalmente me encontrara profissionalmente. Eu lecionava em uma tradicional escola particular aqui de Sampa, o Dante Alighieri, e um dia um grupo querido de aluninhas de inglês me inspirou a escrever minha primeira crônica: “A Valsa das Aleluias”. O texto era um relato lírico e bem-humorado sobre aquelas quatro adolescentes, onde eu fazia um paralelo entre o existir delas, que estavam em um momento super gostoso da vida, com uns insetos noturnos que aqui em São Paulo denominam-se “aleluias”, e que aparecem em dias quentes de início de Primavera, voando loucamente ao encontro de fontes de luz artificial. Naquela noite de 8 de setembro de 2003, descobri-me cronista. Logo depois, fui convidada para escrever na Carta Maior, e durante uns bons dois anos, produzia crônicas semanais para a revista, recebendo engajados, emocionados e acalorados comentários de leitores e leitoras. Esses comentários me faziam querer escrever mais e mais...! Não há nada mais delicioso para uma escritora do que ser lida, e perceber que as leitoras e os leitores identificam-se com seu trabalho. Então, em 2005, criei o PáginaDois com meu mano amado Cassi Rodka, e o resto da história (para quem lê o P2 desde o início!), vocês já conhecem.
Conhecem? Talvez não toda: escrevi crônicas (e também alguns contos) por mais ou menos uns dez anos, e, aos poucos, fui parando, para dar lugar a uma avassaladora voz poética que estava gritando com intensidade dentro de mim. Eu já escrevia alguns poemas, mas eles eram tão tímidos e reservados quanto eu. Isso era bem interessante: mesmo tímida, eu conseguia me derramar por completo em crônicas, que costumam ser textos literários extremamente confessionais. Em minha mente, porém, a poesia era muito mais reveladora, mesmo sendo tão hermética e misteriosa, de regra. Eu tinha censores interiores muito potentes, que me impediam de me abrir por inteiro por meio de versos. Um dia, minha grande amiga e parceira de trabalho Marcella Marx me disse, “onde está a sua poesia, my friend?”. Ela gostava muito das minhas crônicas (que eram, muitas vezes, bastante líricas, verdadeiros poemas em prosa), porém, ela sentia que eu poderia trabalhar mais a minha voz poética. E assim foi: lembro de ter escrito uma crônica sobre isso, e, a partir daquele dia, passei a desafiar-me a escrever poemas mais e mais. E mais. Até não conseguir mais viver sem escrever poesia. E assim estou, até hoje. Os poemas me invadem em momentos muito incertos, e inesperados. Porém, isso será tema para outra newsletter, uma vez que amo falar de processos criativos, uma vez que trabalho de perto com mecanismos e meios de criação literária em minhas oficinas de escrita, há quase cinco anos já. Meus alunos e alunas me inspiram e me oferecem ferramentas para entender a cada dia mais o fazer literário.
E o Tempo, Clarice? Sim, mas claro, o personagem principal desta crônica! Personagem? Crônicas têm personagens? Ora, esta crônica é minha, portanto, com ela faço o que bem desejar, leitoras e leitores...!
Peço licença para discordar da querida Vó Nininha. Não creio que o Tempo seja um ente canalha, trapaceiro, ou maldoso. Por certo entendo a razão pela qual aquela simpática senhora maldizia o Tempo. Ele se esvai, de modo inevitável; vai deixando marcas físicas irreversíveis, e não é todo mundo que consegue lidar bem com elas. Eu mesma, olho minhas fotos aos 30 anos, e penso, “Nossa, essa menina linda e sorridente poderia ser uma filha minha!”. Essas são as obviedades da passagem do Tempo: as rugas, os cabelos brancos, as gordurinhas a mais, e insistentes. Certa vez li uma frase de Clarice Lispector, algo como “este meu corpo manchado de gordura e rugas”. Sim, Clarice L., o Tempo pode ser cruel, uma vez que nosso corpo vai se transformando de modo a talvez não mais o reconhecermos, com sua passagem. Há, no entanto, o outro lado: para a evolução da mente, o Tempo é amigo, é aliado, é companheiro, é confidente. Sim, é lugar-comum dizer que o passar do Tempo nos traz sabedoria, segurança e coragem. Mas a ideia é absolutamente real, palpável, inegável.
O espelho me oferece hoje uma Clarice D. com olhos castigados pelo que já viram e passaram. E os mesmos olhos refletem também a imensidão de tudo que experimentaram. Entretanto, meu “corpo manchado de gordura e rugas” é corpo forte, resistente, é corpo livre, corpo que fala, que mostra, que se coloca no Mundo. Corpo que escreve, que se manifesta sem medo, que explora diferentes possibilidades e universos. É corpo presente, corpo que se conecta com a alma e com a mente: sem precedentes em minha própria trajetória. Corpo que escolhe o que deseja, que busca o prazer, e que sabe lidar melhor com a dor. Corpo preparado para as intempéries. Corpo noturno, corpo encorpado pelo que já passou. Corpo maduro, que mergulha no infinito. No infinitivo. No verbo. Corpo que quer conjugar, e ser conjugado. Corpo que sabe que é admirado. Corpo que reflete meus desejos. Corpo que goza. Corpo que quer. Sempre mais. Que me invada e penetre o Tempo, este sábio.
Time goes by so slowly
Time goes by so slowly
Time goes by so slowly
I don't know what to do
(Madonna)
O Tempo e Christopher Nolan
por Pedro Cunha
O tempo não existe. Ele é uma convenção social experimentada de forma diferente por cada um de nós, e também de forma coletiva por todos nós. O mesmo tempo que é o “mano velho” da Fernanda Takai também é o “canalha!” da Clarice. Os mesmos cinco minutos que são intermináveis quando seu time precisa segurar um resultado escorrem muito rápido quando ele precisa ainda marcar um gol.
Um dos diretores mais incensados da atualidade, Christopher Nolan, tem na questão da experiência do tempo um dos seus temas principais. Nas suas obras mais grandiloquentes, como “A Origem” (Inception, 2010) (resenhado aqui ) ou “Interestelar” (2014), Nolan brinca com temporalidades que andam em tempos diferentes. O tempo é simultaneamente mais rápido e mais lento, dependendo de onde a gente está. O tempo do caminhão caindo da ponte pode durar uma eternindade, enquanto a invasão e tomada de uma fortaleza pode levar horas. Para um pai se passam instantes, enquanto para uma filha, corre uma vida inteira.
Em 2000 Nolan ainda não era Nolan e fez a sua primeira experiência de ressignificar o tempo. “Amnésia” (Memento, 2000) conta a história de Leonard, um cara que sofre um acidente e perde a capacidade de gravar a memória recente. Como o diretor nos faz entender o que ele vive? Montando o filme de trás para a frente. O resultado é não menos que maravilhoso, um thriller de suspense que nos deixa colado na cadeira enquanto Leonard vai se aproximando, tal qual Édipo, do assassino que persegue.
Já em 2017 Nolan, que já era o consagrado Nolan, refina suas reflexões anteriores sobre o tempo. “Dunkirk” é um filme de segunda guerra que não é um filme de segunda guerra. É um exercício de cinema sobre o tempo. E é lindo, diga-se de passagens. As tomadas são maravilhosas, a fotografia é lindíssima, a trilha de Hans Zimmer é parte fundamental da trama. Ao mesmo tempo acompanhamos soldados esperando resgate num cais, numa espera de uma semana que demora uma eternidade. Um barco atravessa o canal da mancha, num trajeto de 24 horas. E um piloto de caça faz a cobertura aérea, que demora cerca de uma hora. Os instantes do avião, o dia do barco e a eternidade dos soldados passam ao mesmo tempo, e Nolan consegue fazer isso de uma maneira clara e com sentido. Dunkirk está disponível no HBO Max.
Superdicas
✍️ Sobre o poder da memória e da capacidade que temos de dominar o Tempo, indicamos a poderosa escrita da autoficcionista francesa Annie Ernaux, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura 2022. Algumas obras da autora: Os Anos, O Jovem, O Lugar, A Vergonha, O Acontecimento e Paixão Simples, todas publicadas no Brasil pela Fósforo Editora.
🎧 A turnê do genial músico e poeta uruguaio Jorge Drexler segue correndo o Mundo neste ano de 2023, e intitula-se Tiempo y Tinta. Nela, Drexler apresenta clássicos de sua belíssima carreira, bem como as novidades de seu último álbum, Tinta y Tiempo. Em São Paulo, ele se apresenta no dia 9 de novembro no Espaço Unimed (antigo Espaço das Américas), e em Porto Alegre, no dia 11 de novembro, no Ginásio Gigantinho. Vale muito conferir! Tinta y Tiempo - álbum na íntegra
📺 Estreou na Netflix essa semana Nimona, longa de animação baseado nos quadrinhos de Noelle Stevenson. O filme é tão bom quando o quadrinho que a inspirou e vale muito a pena conferir!
🍹 O Riviera Bar, localizado no coração do Baixo Augusta em São Paulo (Avenida Paulisa, 2584), é uma verdadeira viagem no Tempo: o bar existe desde 1949, e funciona 24h! O lema da equipe é “Envelhecer é algo que não acontece com quem está sempre aberto. Desde 1949. Ou desde sempre. Você escolhe”. Clientela culta e diversa, decoração cheia de estilo (com destaque para as várias fotos de escritores e escritoras, e para as frases em neon vermelho com referências ao Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade), serviço impecável, comidinhas deliciosas, e coquetéis incríveis assinados pelo talentoso chef de bar Eduardo Tavares. Prestigie o belo balcão vermelho, e curta a maravilhosa seleção musical! Riviera Bar no Instagram
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Até a próxima! 🍒🧚♀️