Como é frágil o coração humano, espelhado poço de pensamento
Tão profundo e trêmulo instrumento de vidro, que canta ou chora
Em muito breve a carne
Que a caverna carcomeu vai estar
Em casa, em mim.
E eu uma mulher sempre sorrindo.
Tenho apenas trinta anos.
E como o gato, nove vidas para morrer.
Esta é a Número Três.
Que besteira
Aniquilar-se a cada década.
(trecho do poema Lady Lazarus, de Sylvia Plath)
Coisas da Vida
por Clarice Dall’Agnol
“Depois que eu envelhecer
Ninguém precisa mais me dizer
Como é estranho ser humano
Nessas horas de partida”
(Rita Lee, “Coisas da Vida”)
Esta semana meu celular me “mandou" como memória uma foto minha de 2004: uma foto onde eu apareço posando junto à minha estante de livros, com pose de intelectual (lembro que na época eu escrevia crônicas para dois jornais, um impresso, do Paraná, e outro on-line, aqui de Sampa. Algum dos dois veículos me pedira uma foto para colocar em minha coluna quinzenal. Na foto, estou super sorridente, com cabelos bem curtinhos, blusa de inverno azul-marinho de gola alta, rosto com uma maquiagem leve, olhos vivos, pele esticadinha e viçosa de menina de trinta anos que eu era, tudo realçado por uma boa luz de flash de uma câmera digital que eu tinha na época. Nada de filtros, porque não havia filtros. Era eu pura. Genuinamente e verdadeiramente, uma Clarice com trinta anos recém completos. Confesso que me achei linda, e feliz. E pensei, “Nossa, poderia ser uma filha minha essa menina aí!”.
Alguns dias antes de ver essa foto, eu havia assisitido um pequeno vídeo no Instagram, onde a excelente e belíssima atriz brasileira Maria Fernanda Cândido (que tem mais ou menos a minha idade) comenta que muitas pessoas perguntam-lhe se não fica perturbada ao ver fotografias e vídeos seus de vinte anos atrás; se não se sente estranha por ver que o tempo passou, e que já não tem mais aquele frescor todo da juventude. A atriz então diz apenas que obviamente não: seria uma extrema injustiça com ela mesma comparar-se a seu “eu” mais jovem. Ela segue dizendo que aquela menina não existe mais, e que a mulher madura que hoje ela é ama muito a jornada de vida pela qual aquela jovem passou até chegar nos dias de hoje, com as marcas inevitáveis (e valiosíssimas) que o tempo nela deixou. Marcas que a tornaram a mulher segura, feliz, realizada, inteligente e vivida que é hoje. Concordei inteiramente com Maria Fernanda. É exatamente assim que me sinto. Como comparar-se a um “eu” seu de vinte, trinta, quarenta, cinquenta anos atrás? É absolutamente sem sentido, e absurdo. E isso não diz respeito apenas à imagem e aparência. Não há como tecer comparações de qualquer natureza (psíquica, intelectual, emocional) entre quem você foi com vinte anos, e quem você é com cinquenta.
Ainda nesta semana, lembrei-me da poeta estadunidense Sylvia Plath, uma de minhas mais importantes influências literárias. Sylvia teve uma vida muito curta: suicidou-se aos 30 anos, deixando dois filhos pequenos e um casamento conturbado e fracassado. A poeta sofria de transtorno bipolar, e literatura foi o meio que encontrou para lidar com a doença. Não teve sucesso literário em vida, porém, tornou-se um ícone literário após sua prematura morte, tendo deixado vasta obra poética. O que então me veio à mente foi que Sylvia se manteve jovem aos olhos de seus admiradores. Mas eu honestamente preferiria tê-la visto envelhecer. Quantos mais enigmáticos e belos poemas teria criado? Nunca irei saber.
Apenas para completar esse encandeamento de acontecimentos na temática “juventude perdida" em minha vida nos últimos tempos, no final de semana passado, fui com meu irmão Cassiano Rodka, meu parceiro aqui no PáginaDois, à estreia da peça “Rita Lee - uma autobiografia musical” (aliás, o Cassi escreveu lindamente sobre o tema na última News). Eu adorei a peça, que me emocionou ao “nível lágrimas” em diversos momentos. Fiquei especialmente tocada quando Rita (interpretada de modo magnífico pela atriz paulistana Mel Lisboa) desenvolve lindo monólogo sobre amadurecer e envelhecer, e toda a beleza que pode estar contida nesse processo, se bem soubermos degustá-lo e aproveitá-lo. Nos seus mais mínimos e deliciosos detalhes. Viva Rita!
***
E ainda falando na passagem do tempo e processos de amadurecimento, aproveito esta crônica para lamentar o falecimento do escritor nova-iorquino Paul Auster, que faleceu hoje (1/5/2024) aos 77 anos. Deixando volumosa, diversa, densa e importante obra literária de presente para a Humanidade, Auster foi-se. Autor da genial “New York Trilogy", do incrível “Broklyn Follies", do emblemático “Conto de Natal de Auggie Wren”, e dos perturbadores roteiros de cinema “Smoke” e “Blue in the Face” (que li na faculdade de Letras em 2000 e marcaram minha vida para sempre), e que foram filmados e dirigidos por Auster e Wayne Wang. Os roteiros são uma série de pequenas e intrigantes histórias retratando o bairro do Brooklyn, em Nova York, e seus moradores. Lembrei-me de Auster enquanto escrevia este texto, porque ele figura entre minhas mais importantes influências literárias, e também pelo fato um de meus livros favoritos dele, “Winter Journal", ser um belíssimo relato autobiográfico sobre a passagem do tempo, sob o ponto de vista de seu próprio corpo: narrado em segunda pessoa - escolha sofisticadíssima e complexa no fazer literário - o romance dá ao leitor uma visão detalhada das várias fases da vida do escritor, por meio das sensações experimentadas por seu corpo. Leitura surpreendente, emocionante e agradabilíssima, inspirou-me, na época que li, a escrever um poema na mesma linha. Infelizmente não consigo me lembrar do título, ou o transcreveria aqui. Descanse em paz, Auster.
Superdicas
📚 Como sempre faço aqui na News, recomendo os dois livros do mês do clube de literatura do Círculo de Poemas, que assino e amo. No mês de abril, tivemos a plaquete “Cova profunda é a boca das mulheres estranhas”, de Mar Becker, e o livro “Cancioneiro Geral [1962-2023], de José Carlos Capinam, com orelha da diva Maria Bethania, uma grande apreciadora de poesia.
📚 Mantendo-me na temática principal desta News, faço questão de comentar que em abril foi lançado o romance póstumo do mestre e prêmio Nobel Gabriel García Marquez, “Em agosto nos vemos”, pela Editora Record. Foi organizado por seus dois filhos. Na breve, brilhante e supreendente narrativa, Gabo nos presenteia com as aventuras ousadas e corajosas de uma mulher de meia idade descobrindo-se, de várias maneiras.
📚 A revista Quatro Cinco Um de abril está como sempre recheada de ótimas matérias, com destaque aos artigos relembrando o dia da Revolução dos Cravos, que derrubou a ditadura em Portugal em 25 de abril de 1974. Também vale muito ler a matéria do escritor paulista Marcelo Ariel, “Pontes feitas de poesia", onde ele discorre sobre as edições brasileiras de obras dos poetas portugueses Ruy Belo e Luís Miguel Nava.
🎧 Ando ouvindo muito e adorando a discografia do músico argentino Kevin Johansen Atuante desde 2000, Johansen, filho de pai estunidense e mãe argentina, morou por muito tempo nos Estados Unidos, e boa parte de suas canções trazem toques da língua inglesa mesclados ao espanhol, o que as torna muito peculiares, e deliciosas de ouvir. A voz e a modo de cantar do músico me lembraram muito Leonard Cohen, e, pesquisando, descobri que é uma de suas grandes influências musicais. Johansen lançou recentemente seu último álbum, Quiero Mejor. No Spotify.
🎭 Como não poderia deixar de ser, a peça Rita Lee - uma autobiografia musical, que está no Teatro Porto, em São Paulo, de 26 de abril a 7 de julho de 2024.
🎞 A já tão comentada Baby Reindeer me prendeu como há muito nenhuma série destes novos tempos fazia: imperdível. No Netflix.
🧠 O podcast da minha amiga e aluna, a poeta Joziane Ferreira da Silva, está belíssimo: Jô lê poemas de sua já vasta obra poética. No Spotify: A Terceira Margem da Poesia.
🍹 O Caracol Bar mudou-se recentemente para novo endereço, na Barra Funda, mantendo a vibe descontraída e alternativa de sempre, e seguindo a caprichar nos coquetéis e comidinhas. E segue contando também com programação intensa e variada de DJs de 3as a sábados. É bom reservar!
💃 🕺 O Ephigenia é uma nova casa noturna que fica no centro de São Paulo (no Viaduto Santa Ifigênia, 66), e já figura na lista dos lugares que passam a fazer parte da revitalização dessa área da cidade. Com o lema “Hedonismo no centro de São Paulo”, o espaço, que fica no rooftop de um prédio ao lado do Mosteiro de São Bento, além de proporcionar uma bela vista de Sampa do alto, ainda traz DJs de primeira linha, que comandam, de acordo com as redes sociais, as melhores e mais “hypadas” festas do circuito alternativo atualmente na capital paulistana. Vale conferir! Ingressos pelo Sympla.
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Até a próxima! 🍒🧚♀️
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