Doralice eu bem que te disse
Amar é tolice, é bobagem, ilusão
Eu prefiro viver tão sozinho
Ao som do lamento do meu violão(João Gilberto)
foto: Beatriz De Camillis Dall’Agnol
Clara-alice
por Clarice Dall’Agnol
Quando eu era criança, nos idos dos anos 1980, era comum que as meninas da minha idade (mais ou menos entre oito e doze anos), tivessem uns caderninhos que chamavámos de “caderno de recordações". Pedíamos a várias pessoas importantes em nossas vidas que ali deixassem lembranças por escrito. Um pequeno texto amoroso, um desenho, alguns versos conhecidos ou desconhecidos. Foi assim que descobri que meu pai escrevia poemas. Até hoje não sei era algo regular, e muito menos se ele ainda segue escrevendo. Talvez esta crônica me faça descobrir.
O poema que ele escreveu em meu caderno de recordações se intulava “À Clarice Ausente”. É uma pena que eu não tenha ideia de onde foi parar o tal caderninho, porque assim perdi tal registro (Mãe, está contigo?). Mas lembro-me bem da temática do poema (ele me explicou, à época), e nunca esqueci. Ele havia escrito quando mudou-se sozinho para o interior do Rio Grande do Sul, para assumir sua primeira comarca como juiz de direito. Não me recordo de detalhes, porém, por alguma razão, eu (com apenas um ano de idade) e minha mãe iríamos encontrá-lo depois. Ou seria porque estávamos as duas em férias em Porto Alegre, e ele restara sozinho na pequena cidade interiorana? Achei que me lembrava bem, mas acho que não. Enfim, não importa. O que interessa é que ele escreveu o poema com saudades de mim. Eram lindos versos dedicados à sua filha primogênita (ao momento da escrita, sua única filha), que estava longe. Lembro-me de palavras como “clara", “diminuto”, “seixo" e “paragens” nos versos do poema. Recordo-me também do impacto dos versos em mim, e da sensação afetuosa e acolhedora que me causaram ao ler, e ao guardá-los em meu caderninho.
Rememorando tudo isso, neste exato momento, concluo que talvez os versos de meu pai tenham sido meu primeiro ponto de contato real com a poesia. Digo, como “menina grande", que lia e compreendia já bem o Mundo ao seu redor. Porque meu primeiro contato mesmo com o universo poético foi lendo “Pé de Pilão", de Mario Quintana, com meus pais, quando eu não tinha nem um ano de idade. Meu pai chegou até a escrever na época uma carta ao poeta, que nos respondeu, muito carinhosamente. Sobre essa carta, escrevi há alguns anos uma crônica, e também um poema.
E falando em cartas, correspondi-me por anos com meu pai, por e-mail, quando vim morar em São Paulo. Nossas missivas eram longas, detalhadas, ternas, bem-humoradas e recheadas milhões de trocas profundas sobre diversos assuntos como a minha maternidade (ele adorava receber notícias do neto e da neta pequenos), música, literatura, cinema e aletoriedades; e também sobre a vida e seus desdobramentos. Com o passar do tempo, e com o surgimento de novos modos de comunicação mais fáceis e instantâneos, fomos cessando essa correspondência, infelizmente. Porém, jamais deixamos de nos manter em contato. E assim estamos, até hoje em dia.
Meu pai foi sempre um homem paciente, amoroso, cuidadoso e carinhoso, e construiu para mim, minha irmã e meu irmão, junto à minha mãe, um ambiente familiar aconchegante, tranquilo e cheio de segurança e ternura, que me fez por certo ser hoje a mulher que sou.
Lembro-me com muita emoção das incontáveis vezes em que nos levou aos parquinhos, e também à banca de jornal para nos comprar revistinhas em quadrinhos (o que acontecia “religiosamente” todos os sábados). Lembro-me dos churrascos e dos jantares, do jazz tocando na sala, dos filmes que víamos juntos, dos livros que nos dava, das histórias que ele nos contava, como “A formiguinha e a neve", “A moura torta" e “O velho do surrrão”. Lembro-me da sensação de amor. Meu pai não era (e ainda não é) um homem de muitas palavras. E nem precisa. Sei que posso sempre contar com ele, sei que ele está ali para me acolher, se eu necessitar.
Há algumas semanas, pela primeira vez meu pai escreveu, em uma mensagem de texto, o apelido pelo qual me chamava quando criança e adolescente, “Clara-alice", em referência à “Doralice”, conhecida canção de João Gilberto (um dos grandes ídolos musicais dele). Ele me chamava assim, e às vezes cantava para mim os versos iniciais da famosa música, trocando “Doralice” por “Clara-alice”. E eu adorava. Porém, eu nunca pensara na grafia de meu apelido. Achei tão bonitinho ver por escrito, me emocionei. Não sei até hoje se me chamar assim (ou se cantar a música para mim) era apenas uma brincadeira, ou se ele de fato queria me alertar que amar romanticamente é algo complexo, imprevisível, frágil, incompreensível. Porém, isso não importa. O que interessa é que ele sempre fez a sua pequena “Clara-alice” sentir-se muito amada e acolhida.
Não concordo com João Gilberto. Acho que sempre é melhor ter amado e vivido intensamente um amor, do que nunca ter se arriscado a amar. Como costumo dizer, eu amo até a última gota. E jamais me arrependo.
Pois bem, ao fim desta carta chegamos. Assim, usando as palavras dele mesmo, meu pai é um “avô nato”. Então aqui afirmo, meu amado pai: tu és, e sempre serás, além de um avô, também um “pai nato”. Obrigada por tudo.
Superdicas
📚 Como sempre faço aqui na News, recomendo os dois livros do mês do clube de literatura do Círculo de Poemas, que assino e amo! Neste mês de março, temos a plaquete “A superfície dos dias - o poema como modo de perceber", de Luiza Leite, e o livro “Poema do desaparecimento", de Laura Liuzzi.
📚 “Gelo e Gim” é uma deliciosa coletânea de crônicas do jornalista Daniel de Mesquita Benevides, que reúne textos sobre coquetéis diversos, suas peculiaridades, curiosidades e histórias de “bastidores". O livro é lindamente ilustrado por meu amigo Rafael Marcon. Publicado pela Editora Quelônio.
📚 O Círculo de Poemas promove mensalmente um sarau literário na “Casinha do Círculo de Poemas", que fica em São Paulo, em Higienópolis. Estive lá pela primeira vez participando do clube de leitura de poesias no último dia 21 de março, e foi uma experiência deliciosa e memorável. O grupo lá presente se engajou em leituras dos livros “A morte também aprecia o Jazz", do poeta mineiro Edimilson de Almeida Pereira, e também de “Ancestral", da poeta italiana Gogliarda Sapienza, que tem tradução de Valentina Cantori. O próximo encontro será em 18 de abril, e leremos “Poema de amor pós-colonial", da poeta indígena mojave nascida nos Estados Unidos, Natalie Diaz; e ainda de “Solo para vialejo”, da poeta pernambucana Cida Pedrosa. As leituras são mediadas pelo poeta paulistano Tarso de Melo, e pela livreira Zilmara Pimentel, da Livraria da Tarde, que é uma grande conhecedora e apaixonada por livros e poesia.
📚 A revista Quatro Cinco Um de março está como sempre recheada de ótimas matérias, com destaque aos artigos sobre as mulheres e a ditadura militar no Brasil. Também vale muito ler a matéria da escritora Nara Vidal, “O que escrevo quando escrevo a verdade", onde ela disseca o gênero autoficção e seus desdobramentos.
🎧 Meu músico e poeta preferido atualmente, o uruguaio Jorge Drexler lançou neste mês de março seu mais novo single, Derrumbe. Uma canção melancólica e potente sobre o fim de um amor.
🎧 Meu pai sugeriu-me o álbum do músico gaúcho Nico Nicolaiewsky, “Onde está o amor?", com destaque para a música “Ser feliz é complicado”. No Spotify.
🎞 Final de semana passado assisti o excelente e perturbador Priscilla, filme de Sofia Coppolla sobre a conturbada relação de Priscilla Beaulieu com Elvis Presley.
🧠 O MASP recebe o renomado artista Francis Bacon na exposição “A Beleza da Carne", que vai de 22/3 a 28/7/24.
🍹 O Jazz B é um dos melhores e mais badalados clubes de jazz de São Paulo, e recebe semanalmente bandas nacionais e internacionais de qualidade. Tem uma gostosa carta de drinks, mas as comidinhas deixam a desejar.
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Até a próxima! 🍒🧚♀️
Lindo demais! Nosso pai não tem igual! 💚